Não é permitido ao Poder Legislativo, com base no princÃpio da transparência, interferir em atos de gestão administrativa. Esse foi o entendimento do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo ao anular uma lei de Itapecerica da Serra, de autoria parlamentar, que tornou obrigatória a transmissão ao vivo, pela internet, de todos os procedimentos licitatórios do Executivo e do próprio Legislativo.
Inicialmente, o relator, desembargador Ferreira Rodrigues, não verificou vÃcio de iniciativa na lei. Ele citou precedente do Supremo Tribunal Federal que diz que não padece de inconstitucionalidade formal a norma resultante de iniciativa parlamentar que disponha sobre publicidade dos atos e contratos realizados pelo Poder Executivo.
"Mesmo que a lei não padeça de vÃcio formal, por ter sido editada com enfoque no princÃpio da transparência dos atos da administração, é preciso verificar se tal ato normativo apresenta vÃcio material relacionado à reserva da administração, ou seja, deve ser aferido se a norma interfere (ou não) em atos de gestão, pois o Poder Legislativo, a pretexto de dispor sobre publicidade, não pode avançar sobre matéria que é de competência exclusiva do Poder Executivo", afirmou o relator.
Assim, no contexto do que a doutrina chama de "regime do poder visÃvel", o magistrado disse que é permitido ao Legislativo impor ao Executivo a obrigação de divulgar no portal oficial do municÃpio dados relevantes da atividade administrativa, desde que isso não interfira em atos de gestão.
"O que não se concebe, entretanto, é que o Legislativo, com base no postulado da transparência, interfira em atos de gestão administrativa, impondo ao Executivo, como ocorre no presente caso, a obrigatoriedade de transmissão ao vivo, por meio da internet, das sessões públicas de licitações no site oficial, bem como pela rede social e canal oficial de comunicação", explicou o relator.
No caso de Itapecerica da Serra, Rodrigues afirmou que a exigência prevista na norma, por ser especÃfica e sem qualquer margem de escolha para o administrador, configurou clara interferência em atos de gestão, ofendendo o princÃpio da separação dos poderes.
"O que se nota, no presente caso, é que a lei impugnada, embora tenha sido editada com enfoque no princÃpio da publicidade, no fundo e na verdade, estabelece regras sobre licitação, pois, ao exigir transmissão ao vivo da sessão, sob responsabilidade dos membros da comissão (ou pregoeiro) e do poder licitante, a norma indica como esse procedimento (público) deve ser conduzido no municÃpio de Itapecerica da Serra."
Além disso, conforme o magistrado, nos termos do artigo 22 da Constituição Federal, compete privativamente à União legislar sobre "normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, estados, Distrito Federal e municÃpios".
"No exercÃcio de sua competência legislativa privativa (para dispor sobre regras de licitação em todos os nÃveis federativos), a União editou recentemente a Lei 14.133, de 1º de abril de 2021, dispondo, no §2º de seu artigo 17, que nas licitações presenciais a sessão pública deve ser registrada em ata e gravada em áudio e vÃdeo, sem qualquer referência à necessidade de transmissão ao vivo", destacou Rodrigues.
Segundo ele, como a matéria tratada na lei impugnada, envolvendo transparência das licitações, já foi objeto de regramento em âmbito nacional, com fixação da forma de condução do certame, não há lacunas ou espaços para complementações, exatamente para garantir o mÃnimo da unidade normativa almejada pela Constituição.
"Por se tratar de matéria de competência privativa da União (CF, artigo 22), o entendimento é de que não há possibilidade de criação de norma local com conteúdo diverso daquele previsto pela legislação federal, o que significa que os dispositivos impugnados, no caso, não podem se afastar da diretriz do mencionado artigo 17, §2º, da Lei 14.133/2021, estabelecendo no municÃpio de Itapecerica da Serra seu próprio modelo de transparência". A decisão foi unânime.
Fonte: ConJur